Vamos falar hoje da artista paraibana Lilian Morais que desde criança reside na Bahia. Aqui chegou ainda bebê e foi morar na cidade de Vitória da Conquista, no sudeste do Estado, e nos anos 90 veio para Salvador. Já fez marketing político, de shopping e até de produtos quando tinha uma agência de publicidade, pinta, esculpe, faz performances, ilustra livros, faz tatuagens e atende on-line ou presencialmente pessoas que precisam do trabalho de psicanalista. Diz que estudou Carl Gustav Jung durante muitos anos e atualmente é psicanalista tem ajudado pessoas a enfrentar suas sombras do inconsciente, traumas e aprender a tocar a vida com tranquilidade. Mas, a arte sempre esteve ao lado de Lilian Morais. Ela disse que com sua arte procura retratar o seu tempo e por isto entende que faz uma arte contemporânea. Lembra Lilian Morais que não foi fácil chegar aonde está porque quando criança sofria de dislexia, e tinha muita dificuldade em ler e escrever, então passou por iniciativa própria a desenhar à medida que os professores iam falando em salas de aulas. Assim conseguia depois decodificar os desenhos e sua significância dentro do assunto de cada aula ministrada. Foi difícil sua família entender que tinha esta doença e sua mãe achando que o problema estava nas escolas passou a mudar de escola, e assim estudou em nove delas entre o primário e o ginásio. Na época o problema não era muito conhecido e o tratamento quase não existia.
“Foi a arte que me ensinou a superar minhas dificuldades. Foi através de meus desenhos que passei a entender o que os professores falavam que a arte entrou na minha vida. Sou uma apaixonada pela simbologia e no estudo do Jung a simbologia também tem muita importância. O problema de saúde que tinha hoje é conhecido como um transtorno específico de aprendizagem que Lilian superou totalmente, e atualmente escreve e verbaliza como muita facilidade, e até ajuda outras pessoas a superarem seus traumas. Lilian passou a estudar a psicanálise de Carl Gustav Jung, o suíço que inventou a psicologia analítica. Era aluno de Freud e “criou alguns dos mais conhecidos conceitos psicológicos, incluindo a distinção entre personalidade extrovertida e introvertida e as ideias de arquétipo e de inconsciente coletivo”.
Foi aí que se fortaleceu seu gosto pelos símbolos e hoje usa muito para expressar sua arte e seus sentimentos naquilo que produz como artista. Quando utiliza círculos e anjos essas formas remetem a Mitologia sendo que os círculos “representam a totalidade, a perfeição, evocando uma sensação de harmonia e continuidade como também simbolizam a essência orgânica feminina, enfatizando a união de opostos e a interdependência entre os elementos.” E continua “Na Mitologia os anjos assumem papeis diversificados, mas na sua arte são representados como seres celestiais protetores.” Aprendemos desde cedo que temos cada um de nós nosso Anjo da Guarda que fica vigilante nos protegendo dos maus. Confesso que demorei a entender que ela teve quando criança esta doença porque além de articulada a Lilian é rápida em suas ações.
Sempre atenta ao que acontece ao seu redor Lilian Morais decidiu conhecer de perto como é a relação entre os passageiros do transporte coletivo em Salvador, especialmente nos ônibus. Foi assim que realizou durante um período muitas viagens para os mais variados bairros e sempre interagindo com as pessoas. Foi quando constatou que os baianos que tomam aqueles mesmos ônibus todos os dias terminam se conhecendo e fazendo uma relação de amizade. Viu aniversários, Natal, Ano Novo e outras datas serem comemoradas dentro dos ônibus, inclusive com as pessoas cantando parabéns e os bolos de aniversários cortados e os pedaços distribuídos entre os passageiros, enquanto o veículo percorria as ruas e avenidas do seu itinerário.
Depois ela fez uma exposição no Palacete das Artes, em Salvador, chamada de Bolo No Buzu,nome que escolheu não apenas por causa dos bolos de aniversários, mas também pelas cenas diárias de gente amontoadas dentro dos ônibus a caminho do trabalho ou de casa. Com isto ela trouxe para o museu uma pequena amostra da sociedade em que vivemos e questionou o papel e a precariedade do transporte coletivo na metrópole. Ali se encontram diariamente pessoas de várias classes sociais que viajam espremidas objetivando alcançar o local onde moram ou vão realizar e resolver algum problema pessoal.
Presenciou abordagens policiais, assaltos, discussões, vários tipos de personagens que diariamente circulam nos ônibus pela nossa cidade. E ainda nesta exposição apresentou uma instalação de uma casa destruída parcialmente pelas chuvas baseada num poema de Jorge Carrano chamado “Preta, Bahia Preta”. Ela mostra com sua arte duas realidades do nosso cotidiano de Salvador ou sejam a precariedade do sistema de transporte e das habitações improvisadas que se multiplicam nas inúmeras favelas que cercam a Cidade. Ao olhar uma das telas ou a instalação temos uma crônica visual cheia de cores intensas que nos mostra como sofrem os que precisam do transporte coletivo e de morar nas casas precárias em locais insalubres e inseguros.
Multiplas ações
A Lilian Morais Dutra Pugliesi ou Lilian Morais nasceu na cidade de Cajazeiras, na Paraíba, e ainda bebê seus pais José Dutra de Medeiros e a mãe Tânia Morais Dutra decidiram vir morar na cidade baiana de Vitória da Conquista. Sua trajetória pelo ensino primário e médio foi um pouco tumultuada por causa da dislexia . Até que tudo foi esclarecido e hoje é página virada. Ficou por lá até os dezenove anos juntamente com seus seis irmãos. Já aos quinze anos passou a trabalhar numa clínica oftalmológica, porque o casal tinha poucos recursos, seu pai era caminhoneiro, e os filhos cedo passaram a trabalhar para ajudar no sustento da casa. Chegou a estudar Contabilidade “mas não sei se me serve para alguma coisa”, diz brincando. Nos anos 90 concluiu o curso de Publicidade, na Faculdade Hélio Rocha, em Salvador, criou uma agência de publicidade e foi trabalhar com marketing político para prefeitos. Deixou esta atividade segundo me disse a pedido do seu filho, que a via envolvida com esta gente afeita a atividades não muito republicanas. Então decidiu estudar a fundo o Young e hoje exerce sua profissão de psicanalista com atendimento online ou presencial. É pintora, escultora, faz instalações e ações performáticas, além de ser tatuadora. “Atualmente estou ganhando mais dinheiro com as tatuagens que faço que com minha própria arte. Muita gente hoje gosta de se tatuar e tenho sido muito solicitada”, declara Lilian Morais. Ela mesma ostenta algumas tatuagens em seu corpo esguio.
Suas obras quase sempre estão relacionadas com o comportamento do ser humano, talvez seja resultado dos anos que se submeteu a terapia e depois passou a estudar psicanálise. Na mostra “Romanceando O Inconsciente: A Estética do Encontro entre Animus e Anima” ela se utiliza de símbolos como os círculos, anjos, instrumentos musicais, elementos da mitologia que são pintados em cores fortes onde Lilian Morais “busca questionar as possibilidades de autotransformação, explorando a liberação emocional por meio do encontro com sua anima e animus”. Portanto anima de alma e animus se refere a um elemento da personalidade de todos: o espírito ou sentimento de franca hostilidade. Portanto, Lilian busca nas suas obras dar-lhes um significado intrínseco do ser humano que tem uma complexidade e variáveis infinitas. Quando lhe falei que as pessoas que fazem psicanálise por muito tempo terminam ficando reféns de seus terapeutas ela disse que isto não deve existir. “O terapeuta tem que mostrar aos poucos sua desimportância, ou seja, não precisa ser um anjo da guarda do paciente. Aos poucos ele tem que deixar que o paciente tome suas próprias decisões e resolva os conflitos e problemas que vão surgindo. Disse Lilian “os que ficam presos aos terapeutas estavam procurando um guru”.
As exposições
Na exposição O Bolo do Buzu que fez no Palacete das Artes, em julho de 2015, em Salvador, a Lilian Morais trouxe para o museu momentos que ela vivenciou nas inúmeras viagens que fez para os quatro cantos da Cidade do Salvador a bordo dos ônibus do transporte coletivo. Procurou vivenciar aquelas dificuldades que diariamente milhares de soteropolitanos passam para chegar ao trabalho ou mesmo a um local de compras ou onde vão resolver algum problema numa repartição pública ou empresa privada. Ela viu e sentiu o aperto dentro dos ônibus na hora do rush e os momentos em que os coletivos estão mais vazios, e quando as pessoas fazem até comemorações no seu interior comemorando aniversário, Natal, Ano Novo e assim por diante. Com isto ela expôs no museu a deficiência do transporte público e todas as suas mazelas, além deste lado fraterno e porque não dizer amoroso, desta relação, desta ligação que a repetição das viagens diariamente cria entre as pessoas que fazem aquele mesmo roteiro pegando o mesmo ônibus no seu dia a dia.
Na série Todas As Formas de Amar a artista Lilian Morais apresentou aos que visitaram sua exposição no Museu Kard, em Vitória da Conquista, Bahia realizada em 8 de maio de 2018 mais de duas dezenas de obras com cores fortes e predominância do branco-preto e vermelhos. Todos nós temos o direito de amar a quem quiser, e a artista apresenta em algumas pinturas personagens com olhares de reprovação ou aprovação quando estão diante de casos de amores que fogem ao padrão que adotam.
Também considero que elas têm o direito de aceitar ou não, cada um deve ser livre para suas escolhas. O que não se pode é impedir à força ou obrigar a aceitação. Tudo tem que acontecer dentro de um clima humano, respeitoso e democrático.
Diz Lilian Morais em seu texto que “à medida que contemplamos cada tela, somos desafiados a refletir sobre nossas próprias concepções e preconceitos em relação ao amor.” Defende que “todas as formas de amar são válidas e merecem ser celebradas. Elas nos convidam a abrir nossas mentes e corações para a diversidade amorosa, construindo uma sociedade mais inclusiva e acolhedora”. E continua “Através das cores fortes que exaltam a intensidade feminina e dos personagens quadriculados que representam o masculino no mundo patriarcal, somos impulsionados a reconhecer e apoiar a diversidade amorosa, promovendo uma sociedade onde o amor seja verdadeiramente livre, inclusiva e aceita sem restrições”.
Por exemplo recentemente 1.400 pessoas que protestavam foram presas e agora estão sendo acusadas por crimes que nunca cometeram a até 17 anos de prisão e acusadas de terroristas, comparadas aos integrantes do Hamas que cometeram crimes bárbaros e abomináveis. A visão do artista é sempre uma visão muito particular, dentro de suas convicções políticas, ideológicas e sensoriais. Nem sempre temos que concordar, mas temos a obrigação de defender que se expressem. Eu particularmente, sou um defensor das liberdades de expressão e atualmente estamos sendo vítimas de censura, amedrontamento e até prisão dos que não aceitam estas restrições impostas pelo Judiciário, o pior é que deveria garanti-las.
Na mostra Romanceando o Inconsciente: A Estética do Encontro entre Animus e Anima a artista Lilian Morais depois de abraçar várias formas para expressar sua arte e seus sentimentos procura estabelecer diálogos entre o inconsciente e o consciente individual e a realidade que os cerca. Como me disse que foi através dos símbolos, dos seus desenhos infantis, que conseguiu se livrar da dislexia ela aqui utiliza dos símbolos de anjos, círculos e instrumentos musicais e até mesmo de símbolos conhecidos da mitologia “com cores intensas e vibrantes, explorando a liberação emocional por meio do encontro com sua anima e animus.” Podemos ver que em cada exposição Lilian Morais nos apresenta além das obras em si a sua significância e a relação entre o fazer artístico e o seu inconsciente, o seu processo criativo que vem lá dos seus sentimentos mais profundos e que se materializa nas diversas formas e cores. Evidente que é uma maneira de colocar o observador de sua obra a refletir sobre a condição humana e toda sua complexidade. Ela procura sempre não apenas apresentar obras estáticas numa parede, mas que sejam capazes de provocar nos que a apreciam questionamentos interiores através de suas formas e cores vibrantes.
Participou da I Bienal de Arte Sacra de Braga, em Portugal, de 3 de agosto a 3 de setembro no Museu Pio XII que fica no Largo de Santiago, 47, na cidade de Braga. Participaram vários artistas, inclusive alguns convidados especiais, entre estes Lilian Morais. Na Exposition Femmes Dans Le Monde realizada em 31 de março de 2017 no Musée de l’Histoire Vivante Montreuil, na França, juntamente com as artistas Izabel Goes, Kátia Cunha, Guidha Cappelo e Zélia Mendonça. Elas trabalharam com jovens adolescentes filhos de imigrantes em escolas municipais. Lilian ensinou a trabalhar com objetos recicláveis a fazer esculturas, e depois juntamente com os alunos as obras resultado deste trabalho foram expostas. Elas foram para França com tudo custeado pelo governo francês.
Criou e executou uma escultura de três metros de altura na Cidade de Conceição do Coité, na Bahia, representando a mulher sertaneja em sua lida nas roças de sisal trabalhando estendendo fardos de sisal e no desfibramento chamada A Camponesa do Sisal, que hoje é um dos pontos turísticos da Cidade. Ela relembra que quando começou a trabalhar na escultura foi conversar com o escultor Mário Cravo Junior e ele lhe deu um conselho que evitasse trabalhar com solda porque era muito perigoso e mostrou o olho perdido que teria sido num acidente soldando. Ela ressaltou que foi muito bem recebida pelo mestre Mário Cravo e esteve com ele ainda algumas vezes conversando sobre a sua escultura e outros assuntos da arte.
Lilian sempre procura fazer alguma relação entre o masculino e o feminino, e em algumas ocasiões denunciando o machismo e o patriarcalismo. Embora tenha uma aparência frágil ela sobe em andaimes altos, manipula máquinas e ferramentas pesadas com desenvoltura e muita habilidade. Portanto são inúmeras as atividades e ações performáticas de Lilian Morais a qual ainda tem muita estrada pela frente porque vontade de realizar coisas ligadas a arte não lhes falta.
Publicado originalmente em:
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